No início de outubro último, durante a 34ª Reunião de Ciências Planetárias da American Astronomical Society, Michael Brown e Chadwick Trujillo, astrônomos do Instituto de Tecnologia da Califórnia, anunciaram ter descoberto um novo corpo celeste em órbita em torno do Sol, o Quaoar.
Quaoar é um deus da mitologia dos índios Tongva, primitivos habitantes da região de Los Angeles. Ele "veio dos céus, e após colocar ordem no caos, pôs o mundo sobre as costas de sete gigantes. Em seguida criou os animais e o homem." Quaoar, o corpo celeste, tem diâmetro de 1.250 km, mais da metade do diâmetro de Plutão e um pouco mais do que diâmetro inteiro de Caronte, satélite de Plutão. E, ao que parece, ao contrário do deus Tongva, sua imagem vinda dos céus contribuiu mais para o caos do que para a ordem.
A descoberta não surpreendeu muito os astrônomos, ao contrário, é até uma descoberta anunciada, mas os obrigou a enfrentar de novo a incômoda e óbvia indagação da mídia científica: o Quaoar é um planeta?
A resposta mais freqüente a essa pergunta é surpreendente, principalmente àqueles não familiarizados a moderna astronomia planetária: o Quaoar não é um planeta porque foi descoberto agora, mas seria, se tivesse sido descoberto há setenta anos, quando Plutão foi descoberto!
Essa estranha resposta torna mais significativa a própria descoberta, pois representa a rara oportunidade de vivenciar - e por isso entender melhor - como se constrói o conhecimento científico. O que estamos assistindo agora não é apenas o momento de uma nova descoberta científica, mas principalmente o momento em que essa e outras descobertas semelhantes obrigam a comunidade científica a rever um conceito, neste caso o ainda hoje mal definido conceito de planeta.
Não é a primeira vez que o conceito de planeta é colocado em questão. A primeira, certamente muito mais importante, surgiu por ocasião da revolução copernicana, que além de nos desalojar do centro do Universo, tirou dos planetas seu status divino.
Planeta: uma estrela errante - Além do Sol e da Lua, dois conjuntos de corpos celestes chamavam particularmente a atenção das nossas primeiras civilizações: as estrelas e os planetas. As estrelas eram todos os pontos brilhantes - alguns mais do que outros - que mantinham posições fixas entre si, embora se movessem em conjunto, descrevendo círculos em torno de um ponto fixo no céu. Talvez até para não as perderem de vista nessa ciranda incessante, nossos antepassados agruparam a maior parte dessas estrelas fixas em figuras de formas arbitrárias, as constelações.
Mas havia cinco notáveis exceções, cinco estrelas que vagavam sem posição fixa, como se visitassem essas constelações, mas não todas, apenas as doze constelações do zodíaco, como foi chamada a faixa central do céu noturno, caminho do Sol, da Lua e dessas estrelas errantes. Por isso, essas estrelas muito especiais foram chamadas de planetas, palavra grega que significa viajante. Só podiam ser deuses, imaginaram nossos antepassados, provavelmente auxiliares do Sol e da Lua, pois como eles, caminham pelo céu, percorrendo as mesmas constelações. Assim, receberam o nome de deuses: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno.
Muito tempo depois, no início do século XVI, Galileu, com seu primitivo telescópio, descobriu um novo firmamento. Além de uma infinidade de novas estrelas fixas, chamaram-lhe a atenção quatro pequeninas estrelas móveis. Acompanhantes de Júpiter, elas apareciam, desapareciam, e por ele passavam num curioso e nunca visto movimento de vaivém. Esse movimento, associado a essa inusitada freqüência de eclipses, deu a Galileu a certeza de que essas pequeninas estrelas giravam em torno de Júpiter como a Lua girava em torno da Terra. A Terra e Júpiter, concluiu Galileu, eram corpos celestes de mesma natureza, planetas orbitando em torno de uma estrela, o Sol. A Lua, como Ganimedes, Calisto, Io e Europa - as estrelas descobertas por Galileu - eram satélites que orbitavam em torno de seus planetas, Terra e Júpiter.
Desde então, embora enfrentando muitas resistências, a aceitação da nova concepção copernicana do Sistema Solar que amadurecia naquela época, tornou-se irreversível. E com ela uma nova visão do Universo e uma nova concepção de planeta.
A nova concepção de planeta - Ficou claro, desde então, que o Sol era apenas mais uma das incontáveis estrelas fixas do firmamento. E a Terra, apenas mais um planeta, que se somava aos cinco planetas conhecidos. Todos eles eram apenas corpos celestes que se movimentam em órbitas planas, elípticas, quase circulares, em torno do Sol, formando um sistema planetário, o Sistema Solar. Com o passar do tempo, outros planetas foram descobertos e, homenageando novos deuses, agregados a esse sistema: Urano, Netuno e Plutão.
Esse é, ainda hoje, o conceito de planeta. Nossos principais dicionários ainda o consagram - um deles (Aurélio), já com um toque de modernidade, assim o define: "Astro sem luz própria, e que gravita em torno de uma estrela, particularmente o Sol, que é a única com a qual são observáveis diretamente os planetas." Entre as enciclopédias, a consagrada Encyclopaedia Britannica, aprimora e restringe um pouco mais essa definição: planeta é "qualquer corpo (exceto cometa, asteróide ou satélite) movendo-se em órbita em torno do Sol ou de alguma outra estrela." A generalização que tira do Sol o privilégio de ter planetas, já reflete os novos tempos de novas descobertas, pois há indícios observacionais muito fortes da existência de pelo menos 100 planetas extra-solares.
Definições como essas, embora pouco precisas, até há alguns anos pareciam satisfatórias. É certo que muitos asteróides orbitando o Sol foram sendo descobertos mas, embora não houvesse critério definido para distinguir asteróide de planeta, a diferença de tamanho entre eles sempre foi tão grande, que a ninguém ocorria cogitar de considerar que um asteróide fosse planeta. Além disso, como conseqüência do seu reduzido tamanho, a maioria desses asteróides tem formas irregulares, não esféricas. E quase todos orbitavam uma estreita faixa entre Marte e Júpiter, localização que sempre facilitou a sua classificação.
Mas a hipótese da existência de uma nova faixa de asteróides localizada nos confins do Sistema Solar iria trazer futuras perplexidades.
O cinturão de Kuiper. Em 1951, Gerard Peter Kuiper (1905-1973), astrônomo holandês radicado nos EUA a partir de 1933 e considerado o pai da moderna ciência planetária, formulou a hipótese de que nos confins do Sistema Solar deveria existir um anel composto de milhares de rochas congeladas surgidas nos primórdios desse sistema. Essa região ficou conhecida como cinturão de Kuiper.
Essa hipótese não só se confirmou como surpreendeu os astrônomos pela dimensão dos corpos que, a partir de 1992, nela foram encontrados. Esses objetos foram denominados pelas siglas KBO (Kuiper Belt Objects, que significa Objetos do cinturão de Kuiper), ou TNO (Trans-Neptunian Objects, Objetos transnetunianos), por estarem no cinturão de Kuiper, portanto, além da órbita de Netuno. A denominação "objeto", comum a ambas as siglas, já demonstra a indefinição dos astrônomos em relação à natureza desses corpos, pois são muito grandes e esféricos para serem asteróides, mas relativamente pequenos para serem planetas. Outra conclusão ainda mais incômoda resultante dessas descobertas, foi a probabilidade de haver nessa região pelo menos 70.000 KBOs com diâmetros da ordem de 100 km. E, por conseqüência, a hipótese altamente provável de que Plutão deve ser apenas mais um desses objetos, "prematuramente" descoberto em 1930.
A primeira forte confirmação dessa hipótese surgiu em 2000, quando a equipe do astrônomo inglês David Jewitt descobriu um KBO de 900 km de diâmetro, um pouco maior do que um terço do diâmetro de Plutão. Por ser candidato a planeta, esse objeto recebeu o nome de Varuna, uma divindade hindu. Essa descoberta levou Jewitt a prever a existência de cinco a dez outros corpos do mesmo tamanho ou ainda maiores. Um deles acaba de ser descoberto: o Quaoar.
O conceito atual de planeta - No dia 3 de fevereiro de 1999, um ano antes da descoberta do Varuna, quando a dimensão dos objetos transnetunianos descobertos tornou clara a possibilidade de haver muitos "plutões" nessa região, a União Astronômica Internacional (IAU, em inglês) divulgou a seguinte nota a imprensa:
"Nenhuma proposta para a mudança do status de Plutão como o nono planeta do sistema solar foi feita por qualquer divisão, comissão ou grupo de trabalho responsável pela seção de ciência do sistema solar da IAU. Ultimamente, um número substancial de objetos menores têm sido descobertos na periferia do sistema solar, além de Netuno, com órbitas e possivelmente outras propriedades semelhantes às de Plutão. Foi proposto atribuir a Plutão um número num catálogo técnico ou lista desses objetos transnetunianos (TNO) para que as observações e cálculos relativos a esses objetos possam ser convenientemente cotejados. Este procedimento foi realizado explicitamente para não mudar o status de Plutão como planeta."
Uma nota como essa, muito semelhante a manifestações oficiais de governos ou empresas, pode parecer estranha àqueles que têm uma visão idealizada da ciência. Daí a sua importância. Ela torna evidente o caráter humano da ciência, algo freqüentemente esquecido pelas pessoas que costumam ter uma visão mistificada e mitificada da ciência e dos cientistas. A descoberta do Varuna - e agora do Quaoar - mostra claramente que esses objetos têm a mesma natureza de Plutão. A própria lua de Plutão, Caronte, descoberta em 1978, tem quase as mesmas dimensões de Plutão, o que destoa em muito das reduzidas dimensões dos outros satélites em relação aos seu planetas. Seria muito mais razoável considerar Plutão e Caronte um planeta duplo do que atribuir ao segundo o status de satélite do primeiro. Mas o primeiro é Plutão, planeta que tem história, tradição e muito prestígio. E, em ciência, como em qualquer instituição humana, isso vale muito.
Ao que tudo indica, mesmo que outros KBOs ou TNOs sejam descobertos, mesmo que sejam bem maiores que Plutão - o que parece ser muito provável - nenhum deles será considerado planeta pelas associações internacionais de astrônomos.
Talvez a verdadeira razão para essa postura radical seja a incômoda constatação de que, se a cada descoberta como essa, formos acrescentando planetas ao Sistema Solar, ele nunca se complete, pois o número desses objetos pode chegar a centenas. Sem falar na dificuldade de dar nomes a todos eles - pode não haver deuses suficientes em todas as civilizações conhecidas.
Assim, se essa política astronômico-científica prevalecer, é provável que o derradeiro e definitivo conceito de planeta seja uma definição burocrática, como esta: "São considerados planetas os seguinte corpos celestes: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão."
Esperamos que não apareça em seguida o tradicional "revogam-se as disposições em contrário"...
Nossos agradecimentos ao professor Othon Cabo Winter, doutor em Dinâmica Orbital e Planetologia da Unesp, campus de Guaratinguetá, pela leitura desse artigo e pelas sugestões que nos deu.
(Dezembro de 2002)
Alberto Gaspar
(Doutor em Educação pela USP, Prof. de Física da Unesp-Guaratinguetá e autor da Ática)
Fontes:
Sobre astronomia em geral, em português:
http://www.zenite.nu/index.htm
http://www.if.ufrgs.br/~kepler/fis207/comast/meteoro.html
Sobre o Kuiper Belt, em inglês:
http://www.ifa.hawaii.edu/faculty/jewitt/kb.html
Sobre o Kuiper Belt, em português:
http://www.cdcc.sc.usp.br/cda/aprendendo-basico/sistema-solar/cinturao-de-kuiper.html
http://www.if.ufrj.br/teaching/astron/kboc.html
Sobre o Varuna, em inglês:
http://www.ifa.hawaii.edu/faculty/jewitt/varuna.html
Prevendo o Quaoar, em português:
http://www1.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u3759.shtml
Sobre a descoberta do Quaoar, em português:
http://www.comciencia.br/reportagens/espaco/espc15.htm
http://www.astro.up.pt/nd/astro_news/2001/0903pt.html
http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2002/out/07/191.htm
http://www.vivaciencia.com.br/02/02_007.asp
http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/021007_plutaomtc.shtml
Discutindo a natureza do Quaoar
http://www.uol.com.br/cienciahoje/chdia/n726.htm
(Sites acessados pelo Ática Educacional em setembro de 2003.)